“Olhos gulosos de humanidade”. A Fátima Chaguri, generosa que é, disse isso de mim. Confesso a gulodice, pensando que deveria chamar Adriano Gulosoen, tal a voracidade. Nem sempre adequada, devo, também, confessar. Tá aí o colesterol alto e a ansiedade, que “estrova os nelvo”, como diz a dona Francisca. Mas, se a gulodice tem um lado bom, ele acaba de acontecer, pois termino de devorar, numa sentada, o livro sobre a vida de Roberto Carlos Ramos.
Na verdade, há mais de 20 anos, descobri numa reportagem que uma francesa resolvera trocar conhecimentos com um menino de rua brasileiro. Ela ensinava sua língua natal, e ele, o ariê-ariá, um dialeto dos meninos de rua de Belo Horizonte. A gulodice me fez querer saber mais, mas anos se passaram até que redescobrisse, na TV, o Roberto contando sua história, falando de Margherit, a francesa, e pedindo que olhássemos nossa infância e juventude com olhos de humanidade.
Apesar dos e-books, ainda não desisti de ir às livrarias. E ontem, achei o livro escrito pelo Roberto contando o antes e o depois daquele encontro com Margherit. Teria chegado o momento de saciar-me? Chegara. O livro A arte de construir cidadãos: as 15 lições da pedagogia do amor conta, de um jeito simpático e breve como fizemos – você, eu e o povo brasileiro – um menino carente se transformar em um pequeno marginal e como uma francesa, essa sim, com olhos gulosos de humanidade, trouxe de volta o que havia de menino naquele menino.
Negro, morando em favela, a todo momento, a história de Roberto me forçava a lembrar de outro negro, pobre, que brilhou, como Roberto agora brilha: Cartola. “Vai sofrer, vai chorar, e você não merece, mas isso acontece” parecia ser o vaticínio quando do nascimento de Roberto. Na Febem, não foi diferente. Com sarcasmos, torturas e um prognóstico de “irrecuperável” anotado em prontuário, dizíamos a ele: De nós “tu herdarás só o cinismo”.
Mas Margherit tinha outros versos para o rapaz. Aos 13 anos, Roberto já tentara o suicídio, quando Margherit chegou em sua vida, cantando: “Ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida, já anuncias a hora da partida, sem saber mesmo o rumo que irás tomar.” Ele achava que sabia e desconfiava que não era nada bom, daí a tentativa de deixar que o trem passasse por cima de seu corpo.
Ao contrário de nós, Margherit não desistiu de procurar humanidade naquele menino. E Roberto resistiu ao amor de Margherit. Com grosserias e malcriações, parecia lhe dizer: “Preste atenção, querida, embora eu saiba que estás resolvida, em pouco tempo não serás mais o que és”. Esse era o grande medo do menino: que Margherit, como todos nós, desistisse dele.
Mas ela não o fez. Com força, flexibilidade e fôlego, ela passou sete anos dizendo ao menino: “Vá, corra e olhe o céu, que o sol vem trazendo bom-dia”. Até que ele entendeu e aceitou. Hoje, é ela, lá do céu, que vem lhe trazer bom-dia e fazer com que esse pedagogo, que estudou na França, tenha força para cuidar dos 11 filhos que o sol lhe deu.
Leia o livro. Você vai rir, mas também vai sofrer, vai chorar e você não merece. Mas isso acontece.
Adriano Gosuen é consultor pedagógico do Agora Sistema de Ensino.
Currículo - Psicólogo especializado em saúde mental e direitos humanos na Índia, atuou na University of New Hampshire e como oficial de programa na African Network Campaign on Education for All. Participou de vários projetos da Aliança Social pela Educação em grandes instituições, como Ministério da Educação, Unicef e Rede Social São Paulo. Assessorou, entre vários programas sociais, o Petrobras Fome Zero e o Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça, com o mapeamento nacional da situação de adolescentes em medida socioeducativa.